Saturday, August 28, 2010


O ANORÉXICO

No começo daquilo que os médicos chamavam "sua doença" (acrescentando o nome: anoxeria nervosa), Júlio recusava o alimento que lhe era servido, à mesa, com a família; o mesmo fazia no hospital, onde esteve internado. Logo, porém, se deu conta de que aquilo não era suficiente: não podia limitar-se a rejeitar o arroz com feijão, o bife. Tinha de ir mais além. Mas como? Neste dilema debateu-se alguns meses, até que veio a resposta: alimentos IMAGINÁRIOS. Uma categoria na qual não encontraria barreiras. Começou, nesta nova etapa, devagar. Fechava os olhos e, com um mínimo de esforço, via-se no elegante restaurante que, em criança, frequentava com seus pais. Estudava demoradamente o cardápio e pedia um prato sofisticado. Lagosta, por exemplo, ou truta. Quando o garçom trazia a travessa com as pequenas porções de alimento, ele punha-se de pé e, rindo, derrubava tudo no chão. Ou então atirava a lagosta na cara do seu espantado pai. Duas ou três vezes essa conduta foi tolerada, mas depois, naturalmente, o acesso ao luxuoso estabelecimento passou a lhe ser negado. Mesmo gerentes imaginários podem se indignar, o que não chegou a perturbá-lo: simplesmente começou a ir a restaurantes de menos categoria e a lanchonetes. Agora, o que jogava no chão eram pizzas, salgados, cachorros-quentes. E os refrigerantes, decerto. No começo esta conduta foi tolerada, porque em imaginação (e também na realidade) era rico e podia pagar os estragos. Por fim, cansaram delae passou a ser expulso até dos lugares de pior categoria. A esta altura, a quantidade de alimentos que destruira era incalculável, e seu peso se reduzira a uns meros quarenta e cinco quilos (lembrando que se tratava de um rapaz com um metro e setenta e oito de altura), mas ele sentia que sua missão não estava ainda completa. Precisava de algo grande, algo capaz não apenas de abalar o mundo como também de acabar definitivamente com a própria matéria de seu corpo, com a carne, com os nervos, com o sangue. Para isso, precisava subtrair todo o alimento disponível no país e enviá-lo - para onde? - para a África, claro, lá onde pobres criaturas, incapazes da anorexia nervosa, sofriam as angústias da fome. Visualizava, por tanto, enormes armazéns cheios de cereal, gigantes câmaras frias cheias de sangrentas carcaças de boi, barris enormes com leite gordo. Filas de obedientes servos transportavam esta comida a grandiosos navios que cruzavam então o oceano, rumo à África, em cuja praia milhões de famintos aguardavam ansiosos. Mal os barcos descarregavam, se atiravam à comida.
Não é difícil imaginar o que aconteceu. Bem nutridos, os nativos já não se contentavam com o que chamavam de "migalhas". Queriam mais e para tanto não hesitavam em recorrer à violência. Começaram a cruzar o oceano, em barcos toscos. Desembarcavam clamando por alimento, e matavam a quem lhes atravessasse o caminho. Júlio foi um dos primeiros a perecer, atingido no crânio por um certeiro golpe de machado. O atestado de óbito falava em hemorragia cerebral. Mencionava também anorexia nervosa, mas quem sabe das coisas não hesitava em atribuir sua morte à comida. Alimentos imaginários são muito perigosos, mesmo quando não são ingeridos.

1 comment:

Guto Angélico said...

Fantástico! Parabens! De uma sensibilidade incrivel Ewan. Bjãooo